segunda-feira, 11 de setembro de 2017

BIOGASOLINA: A SALVAÇÃO?

Nesses dias de aumentos sequenciais do preço da gasolina, tem circulado na internet muita informação acerca da assim chamada “Biogasolina”, que nada mais é do que a ‘multiplicação’ da gasolina através da mistura de uma parte de óleo de cozinha (óleo de soja utilizado em frituras, p.e.) em uma parte de gasolina.


Biogasolina: gasolina e óleo de cozinha misturados na proporção 1:1

Esse novo ‘jeitinho brasileiro’ poderia ser a salvação no dia-a-dia com uma gasolina superfaturada, ao trazer uma meio de se economizar o equivalente a 50% de gasolina. Mas até que ponto a Biogasolina é a salvação da lavoura?

Por enquanto, a única lavoura salva é a da soja vendida para produzir o óleo que depois de queimado é usado na biogasolina.

Primeiramente, se faz necessário entender o que realmente estamos misturando na gasolina, que já é ‘batizada’ com 27% de álcool. Nos posts ‘Sede de Gasolina’ e ‘Etanol: Separandoa Dupla’, eu traço um paralelo entre os dois combustíveis, mostrando o quanto a adição compulsória de etanol na gasolina prejudica a frota e os cidadãos.

Como já foi dito, o óleo de cozinha é proveniente do uso culinário de um óleo vegetal, em geral feito à base de soja, que por sua vez, é um éster de glicerina misturado a ácidos graxos (gorduras). Óleos com essa classificação em geral possui alto ponto de fulgor (nesse caso, quer dizer que se inflama a 350°C), alta viscosidade e densidade. Antes de usados, Apresentam a seguinte fórmula química básica:

H2C – OCOR1
|
HC – OCOR2
|
H2C – OCOR3

(Em comparação: fórmula da gasolina – C8H18/ fórmula do etanol: C2H6O).

Em sua composição total, apresenta elevado número de carbono em suas moléculas, daí o seu grande potencial para produzir energia quando queimados.

Durante o processo de fritura ou queima, fisicamente, ocorre o aumento da viscosidade e acidez do óleo de cozinha, produção de fumaça e espuma, e alteração da sua viscosidade e densidade. Quimicamente, ele sofre inúmeras reações químicas, como oxidação, hidrólise, polimerização de moléculas, aumento da taxa de oxidação, que afeta os recipientes metálicos onde estiver contido, e produtos de degradação como aldeídos, hidroperóxidos, cetonas, entre outros. Na verdade, não é possível determinar o nível de deterioração do óleo após a sua queima, de modo que sua composição se torna imprevisível. (Caderno de Tecnologia de Alimentos & Bebidas – FSP/USP).

O óleo de cozinha, assim como outros óleos vegetais, em geral são matérias-primas do biodiesel, destinado a motores Diesel misturados ao diesel fóssil ou em substituição ao mesmo. Existem mesmo veículos a princípio movidos a gasolina os quais, após a devida adaptação, circulam utilizando apenas o óleo de cozinha.

Infelizmente, essa não é a realidade dos motores comuns das nossas motocicletas a gasolina/ flex (etanol). Enquanto motores de ciclo Otto, são regidos por um ciclo termodinâmico no qual uma massa de gás (mistura) é submetida a mudanças de pressão, temperatura, volume, adição de calor e remoção de calor a fim de gerar energia e movimento. Assim, consideremos a pressão e temperatura ideais para as quais o motor a gasolina foi construído para funcionar, então ponha-se o etanol (C2H6O), um composto de hidroxilas ligadas a cadeias carbônicas saturadas, com propriedades físico-químicas totalmente diversas da gasolina, um hidrocarboneto alifático derivado da destilação do petróleo. Naturalmente, o etanol não se comportará de acordo com as exigências físico-químicas do motor a gasolina, mas como está misturado à gasolina numa fração menor, o ciclo termodinâmico vai se cumprir, porém não com a mesma eficácia devido à variação físico/química da mistura gasolina/ etanol.

O mesmo vale para a adição de óleo de cozinha. Com constituição mais compatível com o motor a diesel, na câmara de combustão ele tende a reagir como reagiria no mesmo: na fase da compressão, o aumento de pressão o levaria à combustão, dispensando a necessidade de velas e centelhas, como é característico de um motor a diesel.  Contudo, misturado à gasolina, e com o mecanismo diferente de injeção de combustível (carburador) e ignição (vela), o óleo perderá essa propriedade, inflamando-se com a centelha da vela. A combustão do óleo no motor a diesel produz uma expansão progressiva dos gases da queima, ao contrário da rápida explosão instantânea da gasolina/etanol, então no motor a gasolina é possível que o resultado da combustão seja uma ‘explosão fraca’, ou seja, uma detonação intensa, mas com pouca energia convertida em força para o pistão, se dissipando mais na produção de calor e transformação de subprodutos (sendo o carbono o mais notável).

Ainda, ao se misturar óleo de fritura numa gasolina com 27% de etanol em sua composição, haverá um choque de temperatura: não por acaso, os tutoriais da Internet sugerem esquentar o óleo antes de misturá-lo à gasolina, pois o ponto de fusão do óleo é de apenas 14°C, enquanto o do etanol é -114,3°C – em outras palavras, o óleo se congela fácil, e o álcool é ‘gelado’ - se o óleo for misturado em temperatura ambiente cada vez mais próxima de 14°C, a mistura ficaria cada vez mais próxima do estado sólido (todo mundo já deve ter visto uma panela contendo uma massa de branca e sólida de óleo frio). A questão é que nem sempre a mistura está sempre quente o bastante no tanque da moto, então, fatalmente o óleo ficará mais ‘grosso’ em temperaturas limítrofes ao de seu ponto de fusão, o suficiente para a gasolina perder sua fluidez e haver prejuízos em sua pulverização nos gicleurs.

Convém listar ainda a insolubilidade dos óleos em água, no caso, os 0,7% de água presente no etanol que não se misturará ao óleo, tendendo a se separar em repouso (moto parada). Ainda, a insolubilidade de outros componentes dos três combustíveis ocasionará a formação de coágulos ou bolhas insolúveis que no mínimo provocarão entupimentos e falhas no funcionamento do motor.

Ao contrário do motor diesel, desenhado para ter óleo circulando e queimando em seu interior, o motor a gasolina/flex não conta com tais características (talvez um motor a gasolina de 2 tempos se adaptaria à biogasolina...). Portanto, a presença de óleo no motor a gasolina/flex provocará o ‘engorduramento’ do carburador e da câmara de combustão, colaborando para mais entupimentos, encharcamento das velas, e formação de borra na câmara de combustão, da mesma forma que ocorre nos recipientes de fritura.

Deve-se levar em consideração ainda o aumento de acidez em razão do processo de fritura, o qual pode contribuir para o desgaste prematuro das peças do carburador/motor, além do processo de oxidação sobre as mesmas peças já comentado.

Por fim, há a reação química oriunda da queima da mistura gasolina/etanol/óleo de cozinha. A combustão, ao contrário da simples mistura, é uma reação química que gerará a partir dessa mistura diversas outras substâncias, sendo as mais comuns o CO2 e H2O. Da mesma forma que a composição do óleo de cozinha não é completamente conhecida, o resultado de sua combustão acaba sendo uma incógnita, podendo gerar substâncias altamente poluentes e mesmo tóxicas e cancerígenas.

Mas nada é tão esclarecedor como a prática. Eu mesmo fiz uma pequena porção da mistura para entendê-la melhor. Infelizmente, não a utilizei na minha moto, pois, conforme já comentei acima, o risco/ benefício da biogasolina é muito alto para me envolver nesse nível.

Quando se mistura o óleo e a gasolina, num primeiro momento, o que se percebe é uma aparente homogeneidade, e o cheiro marcante da gasolina cede lugar em parte ao cheiro do óleo usado. Tocando a mistura, percebe-se claramente a sua maior viscosidade e uma gordura residual nos dedos em relação à gasolina, que praticamente não deixa nenhum vestígio salvo o odor após se volatizar.


Gordura deixada nas mãos pela biogasolina (acima) e resíduo da gasolina pura (abaixo).

Eu não aqueci a 75% o óleo antes de misturar porque eu queria entender o comportamento da mistura em temperatura ambiente. Assim, após uma hora e meia de descanso, conforme o previsto, a mistura se separou em duas, ficando uma parte de coloração mais opaca em cima e outra transparente, correspondente a um terço do total no fundo do recipiente. Na superfície, bolhas transparentes de gordura estavam por toda parte.

Bolhas de gordura transparentes na superfície da biogasolina.

Após repouso, a mistura se separou em duas fases: na parte em vermelho, ela está transparente a ponto de se ver o fundo do recipiente, ao contrário do resto.

O mais interessante veio com a combustão – não dá parar falar de um combustível sem queimá-lo – a chama foi muito mais consistente e alta do que seria a partir da mesma quantidade de gasolina, mas então veio a surpresa: a biogasolina começou a ferver e borbulhar enquanto queimava, como numa fritura, deixando bolhas e marcas mesmo após a chama ter sido extinta, ficando o odor característico de fritura (isso comprova que é mais conveniente ao óleo sofrer ignição por pressão, não por centelha).


A combustão: chama alta e forte. Acima, bolhas e resíduos com a ebulição de queima.

Foi observado também o comportamento da mistura em baixas temperaturas, em torno dos 14°C. Após um breve tempo na geladeira, um fato chamou a atenção: o frasco plástico em que estava a mistura estava como que amassado – toda matéria em geral se contrai com a redução de temperatura, mas, conforme já era de se esperar, o óleo conferiu à mistura uma brusca retração de seu volume. Como se comportaria o motor de uma moto com biogasolina num dia frio?


Biogasolina antes e depois de sofrer leve redução de temperatura: alterações físicas, inclusive do recipiente.

Finalmente, o que restou da mistura deixei em repouso até o dia seguinte. Tendo sido aquecida sob o sol e agitada, a biogasolina permaneceu aparentemente homogênea, com uma coloração esverdeada no terço superior e amarelada nos dois terços inferiores.

Mistura homogênea, em parte.

Pelo menos na minha avaliação, esses simples testes empíricos foram suficientes para desqualificar a adição de óleo usado à gasolina para uso veicular. As modestas evidências registradas aqui sugerem consequências desagradáveis no uso dessa mistura, com mais ou menos tempo.

A intenção é boa, o escoamento do óleo de cozinha tem sido um grande problema ambiental pela poluição das águas, mas existem outras alternativas – a própria destinação à fabricação de biodiesel e sabão, sem falar que a própria população poderia colaborar banindo as frituras de sua dieta, criando mecanismos de restrição desses alimentos – o que seria mais um ganho na qualidade de vida.

A solução para o óleo usado não está nos tanques das motos e carros. É como colocar parafina de vela queimada na pólvora - são coisas incompatíveis – de fato, o óleo de cozinha é inflamável, mas, assim como outros óleos, seu poder de queima é medido em cetanos, ao contrário das octanas para a gasolina/álcool, o que expõe ainda mais a incompatibilidade entre esses combustíveis.

As propostas de combustíveis alternativos vêm aumentando a cada dia, e aqui eu chamo a atenção para o caso do homem que foi preso por produzir gasolina sintética – dizem que o combustível substituía muito bem a gasolina... Enfim, tudo é uma questão de se manter firme nesse cenário de extorsão pelo petróleo em nosso país e ter esperança num futuro próximo em que teremos opções viáveis de combustíveis ou de motores.

OBS.: Pelo menos, a biogasolina é excelente para acender churrasqueira!