Minha ‘Panzerkampfwagen’ atualizada, 13,5 cv.
A marcha lenta é um
mecanismo vital no motor dos veículos, especialmente nas motos. Constituída, a
princípio, a partir de uma série de tubos e furos dentro do carburador, sem ela
seria necessário dar partida no motor a cada parada numa faixa de pedestre, num
semáforo ou mesmo durante uma redução de marcha.
Quando digo que ela é
crucial para motociclistas é que estes são estruturalmente os mais vulneráveis
no trânsito, de modo que uma parada súbita em função da marcha lenta pode
acarretar um grande perigo.
Mas o que seria capaz de
atrapalhar o funcionamento da marcha lenta?
Primeiro se faz necessário
entender que, embora se origine no carburador, a marcha lenta só se consuma com
o processo de ignição. Quando ele acontece, a pressão negativa, ou vácuo gerado
pela queima da mistura/ exaustão dá ‘vida’ ao carburador, sugando gasolina e ar
através de seus dutos e giclês funcionando em sinergia. Assim, existe uma parte
do carburador que continua funcionando independentemente da aceleração do
motor, injetando continuamente uma porção de mistura mantendo o processo de
combustão mesmo em ausência de marcha.
Acontece que o carburador
está no meio de um circuito onde muitas variáveis podem conspirar para o seu
funcionamento incorreto. Vamos enumerar (sem exaurir todas as possibilidades)
as possíveis falhas que podem prejudicar a marcha lenta, a partir da parte mais
remota do circuito de combustão:
Caixa de ar
1 – CAIXA DE AR: no caso das
Intruders clássicas, que ainda utilizam este aparato onde ar fresco é
armazenado para ser sugado pelo motor, a presença de qualquer corpo estranho
como água, poeira, óleo (advindo do suspiro do motor quando se põe óleo em
excesso no cárter) além de obstruir a passagem de ar para o tubo condutor, pode
acabar chegando através deste até o carburador, especialmente nos furos que
ficam embaixo e à direita no caso do carburador Mikuni VM22. Esses furos na
verdade são dutos conectados ao giclê de marcha lenta e parafuso de ar, de modo
que qualquer obstrução seguramente prejudicará o perfeito funcionamento da
marcha lenta.
2 - FILTRO DE AR SUJO: quando
muito tempo sem manutenção, ao invés de filtrar o ar, o filtro pode acabar se
transformando numa barreira ao fluxo de ar. Em altas rotações, eventualmente o
motor conseguirá funcionar pois gerará vácuo forte o suficiente para constituir
a mistura (que será rica, devido à deficiência de ar), mas em baixas rotações e
na marcha lenta, um filtro muito sujo acabará levando à sua falha. Um filtro
mal colocado também gerará uma obstrução que prejudicará mesmo o funcionamento
normal da moto.
3 - CONDUTOR DE AR:
novamente, um caso típico de Intruders clássicas, qualquer deformidade ou
estrangulamento dessa peça de borracha que liga a caixa de ar ao carburador
poderá afetar o influxo de ar para a marcha lenta, sem falar que sua conexão
incorreta pode obstruir os furos dos dutos que integram o circuito da marcha
lenta no carburador.
Carburador Mikuni VM22
4 - CARBURADOR SUJO: Esta é
a fonte mais comum do problema, seja por uma gasolina suja, seja por um
carburador muito tempo sem manutenção. O que ocorre é a obstrução dos dutos e
giclês, prejudicando a pulverização de ar/gasolina. Nesse caso, mesmo as altas
rotações costumam apresentar problemas.
5 - CARBURADOR DESREGULADO: muitas
vezes, o problema de uma marcha lenta oscilante ou falha está na posição dos
parafusos de ar/ mistura do carburador. Situados respectivamente à direita e
abaixo do carburador, não existe uma quantidade de voltas exatas para uma
marcha lenta bem afinada, embora existam médias facilmente encontradas na
internet para cada carburador, já que cada fabricante, embora faça um mesmo
modelo de carburador, tende a alterar um detalhe ou outro, sem falar na
particularidade de cada moto introduzidas ou não pelo proprietário. Por isso
prefiro afinar literalmente a marcha lenta de ouvido, vou abrindo lentamente o
parafuso de mistura até sentir que o funcionamento do motor está um tanto
acelerado e estável, em seguida, faço o mesmo procedimento com o parafuso de
ar, acertando a quantidade de rpms da marcha lenta (eu costumo deixar em 1.300-1.400
rpm). Vale lembrar que a regulagem da moto deve ser feita com o motor quente e
com o farol ligado.
A marca indica o ponto em que o difusor foi deformado (Fonte: Suzuki Online)
6 - DIFUSOR OVALADO: o Difusor,
às vezes conhecido erroneamente como ‘venturi’, é uma peça de bronze encaixada
na carcaça do carburador acima da flauta, por onde a agulha inicia seu trajeto.
Em algumas motos, cuja agulha do carburador está ligeiramente deslocada em
relação à peça, com o passar do tempo, o movimento da agulha encostando na
borda do difusor acaba deformando seu formato redondo, tornando-se mais aberto,
com o formato ovalado. O resultado é que
quando o cilindro do pistonete desce completamente, não se dá o fechamento do
combustível que sai do giclê principal, ocorrendo uma fuga de gasolina pelo
Difusor que acaba por afogar a marcha lenta. É um problema de difícil detecção,
mas que pode ser solucionado com a troca da peça e correção/ substituição da
agulha/ pistonete.
Em vermelho, mostra o formado da borboleta desgastada.
7 - BORBOLETA OVALADA: em
modelos de carburador em que se utilizada borboletas para controle da entrada
do ar e/ou fluxo de mistura, também com o passar do tempo pode acontecer de a
borboleta do carburador perder seu formado redondo em função da passagem
constante do ar em alta velocidade, assumindo um formado oval pelo desgaste. Ocorre
então algo semelhante ao Difusor ovalado: mesmo fechada, a borboleta não
obstrui totalmente o ar ou a mistura, que escapam para o coletor comprometendo
o funcionamento da marcha lenta. Também pode ser resolvido com a substituição
da peça, e é mais fácil de descobrir. Algumas vezes, em carburadores mais
velhos, a passagem do ar pode provocar mesmo o alargamento do venturi do
carburador, o estreitamente que existe em sua carcaça responsável por impelir a
mistura com mais velocidade rumo ao motor.
8 - COLETOR: responsável
pela conexão entre o carburador e o bloco do motor, é o segundo responsável por
falhas na marcha lenta. Como o motor opera em condição de vácuo, qualquer
passagem de ar interfere no funcionamento correto do motor, especialmente a
marcha lenta. A isso se dá o nome de ‘falsa entrada de ar’, e pode ocorrer, via
de regra, pelo encaixe imperfeito das juntas do coletor, o que é provocado por
reparos desgastados, folga em seus parafusos, ou mesmo danos no mesmo, ensejando
a entrada de ar numa parte do motor onde deve prevalecer o vácuo. Além de
problemas na marcha lenta, a falsa entrada de ar pode gerar também aumento do
consumo e perda de potência da moto.
Um modo prático de se
detectar uma falsa entrada de ar é borrifar óleo WD-40 ou similar em abundância
no motor a partir do carburador, com a moto ligada. Se a aceleração aumentar,
então há alguma passagem de ar no coletor ou mesmo no motor (para descobrir
onde, é só observar onde o óleo é sugado, ou espirrado).
9 - VÁLVULAS: Além da
sincronia perfeita, a vedação completa feita pelo trabalho das válvulas é
crucial para o funcionamento do motor. Quando a válvula está ‘presa’, quebrada,
ou furada, ou as borrachas de seu reparo deterioradas, embora estejam
trabalhando no ritmo certo, o funcionamento do motor fica comprometido pela
entrada indevida de mistura ou saída de gases pelas frestas das válvulas. Pode
ser que a disfunção nas válvulas estejam em outras peças correlatas dentro do
cabeçote.
10 - VELA: à medida em que o
eletrodo central vai se desgastando, nas velas convencionais (eu utilizo velas
com eletrodo de Irídio, mais duráveis e com maior poder de queima), a sua
capacidade de queimar a mistura vai ficando reduzido. Se a vela não for trocada
no tempo certo, começam a ocorrer falhas no processo de combustão,
principalmente durante a marcha lenta, quando o ritmo de cintilação é menor,
daí ocorrerem mais falhas.
Em amarelo, a junta do pistão, em vermelho, a marca da fuga de compressão.
11 - JUNTAS DO PISTÃO: um
problema mais raro, acontece quando as juntas que guarnecem o pistão no bloco se
deformam, ocasionando perda de compressão, afetando a marcha lenta e o
desempenho da moto. Em geral, isso acontece quando o motor se aquece
continuamente acima de sua temperatura de trabalho, o que por sua vez pode ser
gerado por excesso de ar no motor, o que acontece com o uso de filtros
esportivos, turbinas e outros métodos utilizados para ampliar a respiração do
motor acima das especificações originais. Em casos extremos, o ar forçado no
motor pode vir a furar o pistão, comprometendo-o totalmente. O problema algumas
vezes podem vir de fábrica, como já aconteceu com uma série de motocicletas de
uma marca popular no Brasil.
Pistão e camisa arranhados.
12 - CAMISA/ PISTÃO
ARRANHADOS: além de representar uma ameaça ao motor, com fugas de óleo para a
câmara de combustão e contaminação do óleo no cárter, sem falar na perda de
desempenho, a presença de riscos nessas peças impede que motor trabalhe sem
fugas ou vazões, daí a instabilidade na marcha lenta surgir como um sintoma.
Vale fazer aqui uma comparação com uma seringa: imaginem o seu êmbolo de
borracha com rachaduras, então quando for feita a sucção, esta ocorrerá com
falhas devido à passagem de ar pelas brechas - no motor, o que acontece, além
da vazão de óleo e mistura, é a perda de compressão e marcha lenta.
As setas vermelhas indicam os furos do suspiro da tampa do tanque da Intruder 125.
13 - SUSPIRO DA TAMPA DO
TANQUE DE COMBUSTÍVEL OBSTRUÍDO: Parece algo descabido, mas que faz todo
sentido quando lembramos que o motor trabalha gerando uma pressão negativa que
põe em funcionamento todos os demais sistemas que o assistem. Os suspiros na
tampa do tanque existem não apenas para dar vazão aos gases que são gerados
dentro do tanque, como permitem também que o combustível flua livremente para o
carburador. O fenômeno físico por trás deste problema é o mesmo do
funcionamento do instrumento de laboratório chamado ‘pipeta’, usado para
transferir líquidos entre recipientes. Ao ser mergulhado num líquido, a pipeta,
um simples tubo de vidro com a ponta afilada, é preenchida, quando então tem sua
outra extremidade fechada, podendo assim transportar o líquido sem que ele se
derrame até o seu destino, quando é liberado pela simples desobstrução de sua
extremidade superior.
O mesmo vale para a
alimentação de combustível das motos através do tanque/ gravidade. No caso de
motores mais possantes, como o de caminhões, suspiros obstruídos podem levar à
implosão do tanque. No caso da moto, cujo motor em geral não é forte o
suficiente para deformar o tanque, ele transfere o problema para o
funcionamento do motor, que começa a falhar pela deficiência de combustível na
cuba, mais sentida pela marcha lenta.
14 - TORNEIRA/ FILTRO DE
COMBUSTÍVEL: ambos seguem a mesma lógica do tópico anterior, obstruções que
prejudicam o livre fluxo de combustível rumo ao carburador. O que ocorre em
ambos os casos é o acúmulo de sujeira nos respectivos elementos filtrantes,
restringindo a passagem de combustível.
Talvez eu não esgotado todos
os problemas que podem afetar a marcha lenta, mas os listei os principais, e
mesmo alguns inusitados, porém reais.
Vale ressaltar que nem
sempre o problema da falha da marcha lenta é detectado de primeira. No meu
caso, eu fui descartando as variáveis da caixa de ar até finalmente chegar no
motor, descobrindo a razão do problema somente no instante em que o motor foi
aberto e descobriu-se o escape de compressão através da junta superior do
pistão (ver foto em ‘JUNTAS DO PISTÃO).
Foi um exemplo de problema
de marcha lenta de difícil detecção, que demandou muita paciência, observação,
e tempo (foi cerca de um mês de trabalho pessoal e idas e vindas a oficinas).
Como eu já disse, descartei o óbvio até não sobrar mais nada além do motor.
Minhas suspeitas se confirmaram quando, enquanto eu tentava pessoalmente
solucionar o problema, eu percebia que após desligar o motor este fazia um
barulho, ‘Tischhh!’, próximo ao motor de arranque, exatamente onde foi constatada
fuga de compressão pela deformidade da junta.
Um mecânico habilidoso
poderá descortinar mesmo um problema dessa profundidade em pouco tempo, mas
vale lembrar que, de qualquer modo, é preciso descartar as variáveis mais
simples, e isso demandam um certo tempo, o que torna tudo um problema
desgastante, tanto para o piloto quanto para o mecânico. Mas nada que um pouco
de paciência não resolva, afinal, problemas acontecem com qualquer um, e se têm
esse nome, é porque sempre possuem solução.