Nesses dias de aumentos sequenciais
do preço da gasolina, tem circulado na internet muita informação acerca da
assim chamada “Biogasolina”, que nada mais é do que a ‘multiplicação’ da
gasolina através da mistura de uma parte de óleo de cozinha (óleo de soja
utilizado em frituras, p.e.) em uma parte de gasolina.
Biogasolina: gasolina e óleo de cozinha misturados na proporção 1:1
Esse novo ‘jeitinho
brasileiro’ poderia ser a salvação no dia-a-dia com uma gasolina superfaturada,
ao trazer uma meio de se economizar o equivalente a 50% de gasolina. Mas até
que ponto a Biogasolina é a salvação da lavoura?
Por enquanto, a única
lavoura salva é a da soja vendida para produzir o óleo que depois de queimado é
usado na biogasolina.
Primeiramente, se faz
necessário entender o que realmente estamos misturando na gasolina, que já é
‘batizada’ com 27% de álcool. Nos posts ‘Sede de Gasolina’ e ‘Etanol: Separandoa Dupla’, eu traço um paralelo entre os dois combustíveis, mostrando o quanto a
adição compulsória de etanol na gasolina prejudica a frota e os cidadãos.
Como já foi dito, o óleo de
cozinha é proveniente do uso culinário de um óleo vegetal, em geral feito à
base de soja, que por sua vez, é um éster de glicerina misturado a ácidos
graxos (gorduras). Óleos com essa classificação em geral possui alto ponto de
fulgor (nesse caso, quer dizer que se inflama a 350°C), alta viscosidade e
densidade. Antes de usados, Apresentam a seguinte fórmula química básica:
H2C – OCOR1
|
HC – OCOR2
|
H2C – OCOR3
(Em comparação: fórmula da
gasolina – C8H18/ fórmula do etanol: C2H6O).
Em sua composição total,
apresenta elevado número de carbono em suas moléculas, daí o seu grande
potencial para produzir energia quando queimados.
Durante o processo de
fritura ou queima, fisicamente, ocorre o aumento da viscosidade e acidez do
óleo de cozinha, produção de fumaça e espuma, e alteração da sua viscosidade e
densidade. Quimicamente, ele sofre inúmeras reações químicas, como oxidação, hidrólise,
polimerização de moléculas, aumento da taxa de oxidação, que afeta os recipientes
metálicos onde estiver contido, e produtos de degradação como aldeídos,
hidroperóxidos, cetonas, entre outros. Na verdade, não é possível determinar o
nível de deterioração do óleo após a sua queima, de modo que sua composição se
torna imprevisível. (Caderno de Tecnologia de Alimentos & Bebidas – FSP/USP).
O óleo de cozinha, assim
como outros óleos vegetais, em geral são matérias-primas do biodiesel,
destinado a motores Diesel misturados ao diesel fóssil ou em substituição ao
mesmo. Existem mesmo veículos a princípio movidos a gasolina os quais, após a
devida adaptação, circulam utilizando apenas o óleo de cozinha.
Infelizmente, essa não é a
realidade dos motores comuns das nossas motocicletas a gasolina/ flex (etanol).
Enquanto motores de ciclo Otto, são regidos por um ciclo termodinâmico no qual uma
massa de gás (mistura) é submetida a mudanças de pressão, temperatura, volume,
adição de calor e remoção de calor a fim de gerar energia e movimento. Assim, consideremos
a pressão e temperatura ideais para as quais o motor a gasolina foi construído
para funcionar, então ponha-se o etanol (C2H6O), um composto de hidroxilas
ligadas a cadeias carbônicas saturadas, com propriedades físico-químicas totalmente
diversas da gasolina, um hidrocarboneto alifático derivado da destilação do
petróleo. Naturalmente, o etanol não se comportará de acordo com as exigências
físico-químicas do motor a gasolina, mas como está misturado à gasolina numa
fração menor, o ciclo termodinâmico vai se cumprir, porém não com a mesma
eficácia devido à variação físico/química da mistura gasolina/ etanol.
O mesmo vale para a adição
de óleo de cozinha. Com constituição mais compatível com o motor a diesel, na
câmara de combustão ele tende a reagir como reagiria no mesmo: na fase da
compressão, o aumento de pressão o levaria à combustão, dispensando a necessidade
de velas e centelhas, como é característico de um motor a diesel. Contudo, misturado à gasolina, e com o
mecanismo diferente de injeção de combustível (carburador) e ignição (vela), o
óleo perderá essa propriedade, inflamando-se com a centelha da vela. A
combustão do óleo no motor a diesel produz uma expansão progressiva dos gases
da queima, ao contrário da rápida explosão instantânea da gasolina/etanol,
então no motor a gasolina é possível que o resultado da combustão seja uma
‘explosão fraca’, ou seja, uma detonação intensa, mas com pouca energia convertida
em força para o pistão, se dissipando mais na produção de calor e transformação
de subprodutos (sendo o carbono o mais notável).
Ainda, ao se misturar óleo
de fritura numa gasolina com 27% de etanol em sua composição, haverá um choque
de temperatura: não por acaso, os tutoriais da Internet sugerem esquentar o
óleo antes de misturá-lo à gasolina, pois o ponto de fusão do óleo é de apenas
14°C, enquanto o do etanol é -114,3°C – em outras palavras, o óleo se congela
fácil, e o álcool é ‘gelado’ - se o óleo for misturado em temperatura ambiente
cada vez mais próxima de 14°C, a mistura ficaria cada vez mais próxima do
estado sólido (todo mundo já deve ter visto uma panela contendo uma massa de
branca e sólida de óleo frio). A questão é que nem sempre a mistura está sempre
quente o bastante no tanque da moto, então, fatalmente o óleo ficará mais
‘grosso’ em temperaturas limítrofes ao de seu ponto de fusão, o suficiente para
a gasolina perder sua fluidez e haver prejuízos em sua pulverização nos
gicleurs.
Convém listar ainda a
insolubilidade dos óleos em água, no caso, os 0,7% de água presente no etanol
que não se misturará ao óleo, tendendo a se separar em repouso (moto parada).
Ainda, a insolubilidade de outros componentes dos três combustíveis ocasionará
a formação de coágulos ou bolhas insolúveis que no mínimo provocarão entupimentos
e falhas no funcionamento do motor.
Ao contrário do motor diesel,
desenhado para ter óleo circulando e queimando em seu interior, o motor a
gasolina/flex não conta com tais características (talvez um motor a gasolina de
2 tempos se adaptaria à biogasolina...). Portanto, a presença de óleo no motor
a gasolina/flex provocará o ‘engorduramento’ do carburador e da câmara de
combustão, colaborando para mais entupimentos, encharcamento das velas, e
formação de borra na câmara de combustão, da mesma forma que ocorre nos
recipientes de fritura.
Deve-se levar em
consideração ainda o aumento de acidez em razão do processo de fritura, o qual
pode contribuir para o desgaste prematuro das peças do carburador/motor, além
do processo de oxidação sobre as mesmas peças já comentado.
Por fim, há a reação química
oriunda da queima da mistura gasolina/etanol/óleo de cozinha. A combustão, ao
contrário da simples mistura, é uma reação química que gerará a partir dessa
mistura diversas outras substâncias, sendo as mais comuns o CO2 e H2O. Da mesma
forma que a composição do óleo de cozinha não é completamente conhecida, o
resultado de sua combustão acaba sendo uma incógnita, podendo gerar substâncias
altamente poluentes e mesmo tóxicas e cancerígenas.
Mas nada é tão esclarecedor
como a prática. Eu mesmo fiz uma pequena porção da mistura para entendê-la melhor.
Infelizmente, não a utilizei na minha moto, pois, conforme já comentei acima, o
risco/ benefício da biogasolina é muito alto para me envolver nesse nível.
Quando se mistura o óleo e a
gasolina, num primeiro momento, o que se percebe é uma aparente homogeneidade,
e o cheiro marcante da gasolina cede lugar em parte ao cheiro do óleo usado.
Tocando a mistura, percebe-se claramente a sua maior viscosidade e uma gordura
residual nos dedos em relação à gasolina, que praticamente não deixa nenhum
vestígio salvo o odor após se volatizar.
Gordura deixada nas mãos pela biogasolina (acima) e resíduo da gasolina pura (abaixo).
Eu não aqueci a 75% o óleo
antes de misturar porque eu queria entender o comportamento da mistura em
temperatura ambiente. Assim, após uma hora e meia de descanso, conforme o
previsto, a mistura se separou em duas, ficando uma parte de coloração mais
opaca em cima e outra transparente, correspondente a um terço do total no fundo
do recipiente. Na superfície, bolhas transparentes de gordura estavam por toda
parte.
Bolhas de gordura transparentes na superfície da biogasolina.
Após repouso, a mistura se separou em duas fases: na parte em vermelho, ela está transparente a ponto de se ver o fundo do recipiente, ao contrário do resto.
O mais interessante veio com
a combustão – não dá parar falar de um combustível sem queimá-lo – a chama foi
muito mais consistente e alta do que seria a partir da mesma quantidade de
gasolina, mas então veio a surpresa: a biogasolina começou a ferver e borbulhar
enquanto queimava, como numa fritura, deixando bolhas e marcas mesmo após a chama
ter sido extinta, ficando o odor característico de fritura (isso comprova que é
mais conveniente ao óleo sofrer ignição por pressão, não por centelha).
A combustão: chama alta e forte. Acima, bolhas e resíduos com a ebulição de queima.
Foi observado também o
comportamento da mistura em baixas temperaturas, em torno dos 14°C. Após um
breve tempo na geladeira, um fato chamou a atenção: o frasco plástico em que
estava a mistura estava como que amassado – toda matéria em geral se contrai com
a redução de temperatura, mas, conforme já era de se esperar, o óleo conferiu à
mistura uma brusca retração de seu volume. Como se comportaria o motor de uma
moto com biogasolina num dia frio?
Biogasolina antes e depois de sofrer leve redução de temperatura: alterações físicas, inclusive do recipiente.
Finalmente, o que restou da
mistura deixei em repouso até o dia seguinte. Tendo sido aquecida sob o sol e
agitada, a biogasolina permaneceu aparentemente homogênea, com uma coloração
esverdeada no terço superior e amarelada nos dois terços inferiores.
Mistura homogênea, em parte.
Pelo menos na minha
avaliação, esses simples testes empíricos foram suficientes para desqualificar
a adição de óleo usado à gasolina para uso veicular. As modestas evidências registradas
aqui sugerem consequências desagradáveis no uso dessa mistura, com mais ou
menos tempo.
A intenção é boa, o
escoamento do óleo de cozinha tem sido um grande problema ambiental pela
poluição das águas, mas existem outras alternativas – a própria destinação à
fabricação de biodiesel e sabão, sem falar que a própria população poderia
colaborar banindo as frituras de sua dieta, criando mecanismos de restrição
desses alimentos – o que seria mais um ganho na qualidade de vida.
A solução para o óleo usado não
está nos tanques das motos e carros. É como colocar parafina de vela queimada
na pólvora - são coisas incompatíveis – de fato, o óleo de cozinha é
inflamável, mas, assim como outros óleos, seu poder de queima é medido em
cetanos, ao contrário das octanas para a gasolina/álcool, o que expõe ainda
mais a incompatibilidade entre esses combustíveis.
As propostas de combustíveis
alternativos vêm aumentando a cada dia, e aqui eu chamo a atenção para o caso
do homem que foi preso por produzir gasolina sintética – dizem que o
combustível substituía muito bem a gasolina... Enfim, tudo é uma questão de se
manter firme nesse cenário de extorsão pelo petróleo em nosso país e ter esperança
num futuro próximo em que teremos opções viáveis de combustíveis ou de motores.
OBS.: Pelo menos, a biogasolina é excelente para acender churrasqueira!
OBS.: Pelo menos, a biogasolina é excelente para acender churrasqueira!
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